UMA REFLEXÃO SOBRE A DISTÂNCIA DE NÓS MESMOS


It’s times like these
You learn to live again
It’s times like these
You give and give again

(Times like these – Foo Fighters)

Ano de 2010. As eleições eram disputadas e cruciais. O governo Lula chegava ao fim e as forças reacionárias saíam do armário. Falava-se abertamente em penas de execução, em apoio a ditadura e todas estas coisas que hoje já nos soam como trivialidades. Num curso pré-vestibular popular que trabalhava, em uma das minhas aulas em que discutia estes tempos em que vivíamos, disse uma frase banal, meio que roubada de leitura de Hannah Arendt, mas que desde então, nunca saiu da minha cabeça: “tempos interessantes e sombrios virão”. Não demoraram muito. A sombra paira sobre nós.

Tolerância foi palavra da moda. Agora discute-se respeito, um avanço na discussão. Tolerar não elimina as preceituações que geraram o distanciamento. Respeitar talvez também não, mas elimina a distância. Busca-se o convívio, a discordância amistosa e compreensiva, a aceitação do outro em sua plenitude, e assim, nos tornamos plenos. Tolerância e respeito…

Pedir tolerância e respeito se tornou o grande mantra desta geração e época. É óbvio que embates se tornam então naturais, pois se se reclama algo, é porque ele, de certa forma, não existe, e vai contra algo já estabelecido. Tolerância e respeito são valores pedidos, portanto, porque faltam em nossa sociedade. Isto diz muito de quem somos e como estamos. Estamos divididos. Entre aqueles que toleram e respeitam, e que querem espalhar estes valores para construir uma nova sociedade, e aqueles que são intolerantes e desrespeitosos, e que querem manter as coisas como estão. Este maniqueísmo tosco, claro, não diz respeito a acepções políticas ou ideológicas, mas mais a uma dimensão axiológica do indivíduo e do grupo a que pode pertencer. Toda esta conclusão é rápida e rasa, e portanto, é muito mais complexa do que um traçado lógico em algumas linhas de um texto. Mas traz uma discussão que é importante e que as vezes não pensamos: como nós lidamos com a tolerância e com o respeito?

Eu me enquadro nos que lutam por respeito e tolerância. Como professor, posso dizer sem medo que transformo minhas salas cotidianamente em espaço de militância em razão de uma sociedade melhor. Na minha vida pessoal, por mais que tente, não consigo me furtar de discussões com amigos e conhecidos quando estes dois valores são colocados em jogo. Quero e luto por tolerância e respeito. Em uma das minhas recentes discussões via redes sociais (um espaço cômodo de discussão…) me enervei. Passei dos limites éticos, morais e cometi o que na visão de muitos poderia ser considerada uma falha imperdoável: apesar de ter tomado cuidados de não citar nomes e de não direcionar a ninguém, levei a discussão a um nível que não há mais discussão, entre xingamentos e impropérios, os mesmos que a mim já foram dirigidos pela turma do “deixa como está” e que me incomodaram a ponto de cerrar o debate. Num estampido de raiva, tudo se esvai.

Após uns 3 dias me dei conta do ocorrido. Meu ato foi impensado, infantil, e acabei envolvendo mais gente do que havia inicialmente. Um desastre. Cometi o que sempre critiquei e combati: fui intolerante e desrespeitoso. Não com alguém diretamente, mas substancialmente comigo mesmo. Meu pai dizia que só o erro ensina: a melhor forma de conhecer uma cidade, por exemplo, é se perder nela; errar o caminho. Meu caminho errado estava ali. Agora faltava tentar aprender.

Fiquei o fim de semana pensando nisso. Angustiado, repreensivo de si, pensei no que tinha ocorrido. Não quero e não vou cagar regra sobre redes sociais; tem gente que já faz isso cotidianamente. Quero propor, e quem sabe alargar, a reflexão a que me impus. Qual é o limite da tolerância e do respeito? Existe algum?

Desconfio que as pequenas intolerâncias são as que causam mais impacto. São as mais difíceis de se perceber. São aquelas que ninguém sequer entende. E são aquelas que impõe um limite que não existe, que é irreal. Minha tolerância e meu respeito vão até determinado ponto: minha vaidade, meu ego, meu tempo, enfim, vão até mim mesmo. Porque no final das contas, o mundo gira ao redor de nossa individualidade. Não sei, leitor, se você há de concordar comigo até aqui, e me desculpe a sinceridade, o que busco não é sua concordância. Mas pense: quantas vezes já cortou o papo, quantas vezes já largou algum debate de lado, quantas vezes já se distanciou por oposição de ideias, credo, ideologia ou qualquer coisa que valha? A tolerância e o respeito são categorias de humanidade que geralmente se alardeiam como socialmente desejáveis. Mas penso que não inteiramente. Há uma reflexão interna que vem antes. E que parece óbvia, mas não é. Há que se refletir sobre o respeito que temos e guardamos dentro de nós mesmos. O quanto dele exercitamos? O quanto dele existe em nós?

Cobramos respeito e tolerância, militamos e lutamos por um mundo mais igual, e no fundo, com o vizinho toleramos e respeitamos tão pouco. Fechamos os olhos, cerramos os ouvidos, mudamos a direção do andor, e quanta intolerância isto também é! Impedir a diferença, seja ela qual for é intolerante e desrespeitoso. Beira a agressão, aquela que impede, de fato, qualquer relação mútua. A violência, esta sim, que vem travestida de várias vestes, impõe um limite intransponível. Esta é a que deveríamos nos calar bem alto, para que se cale em silêncio; virar os corpos e rostos para que se isole e morra de inanição. Não a diferença. E nos pequenos atos talvez não estejamos percebendo que minamos as relações tão ricas entre nós. De tão grande o mar, não percebemos que a praia também é feita de minúsculos grãos de areia.

Estamos na sombra, escura e cômoda. Tempos sombrios. Tempos em que nos distanciamos de nós mesmos. Não temos noção do que está dentro de nós. E então o que aparece pra fora, pro mundo, é o incontrolável, o caos desconhecido. Caos é potência. Temos poder e o ignoramos. É virar-se do avesso e descobri-lo.

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