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Contos de uma infância em Santa Teresa.

Barquinhos de papel


Barquinhos de papelNa porta da vila havia um vazamento que nunca deixou de existir. A água escorria por entre as fendas do concreto no chão e sempre encontrava caminhos tortuosos para o seu curso. Seguia descaindo pela ladeira abaixo, por entre pedras e paralelepípedos, levando galhos secos e pontas de cigarrilhas velhas para o obscuro mundo subterrâneo dos esgotos. A mim, só me cabia a hipnose de estatelar os olhos no curso d’água cristalino que saía da porta da casa de minha vó.

Não demorou muito para que aquilo virasse um brinquedo. De gêiser a rio com corredeiras, o vazamento eterno era um mundo fantástico onde aprendi a fazer barcos de papel. Nascia assim uma ciência: a barcologia. Era assim que eu chamava a arte de construir barcos. Foram árduos meses de pesquisa e experimentação. Logo descobri que as folhas de jornal não serviam para barcos. Absorviam rapidamente a água e se desmanchava a embarcação, resultando na morte dos tripulantes. Passei para a cartolina que pesada demais, não desatracava. Depois de alguns testes descobri que haviam dois materiais mais propícios ao sucesso da construção: folha de papel em branco e folha de caderno. Esta última era ainda melhor, pois era leve e, portanto, mais veloz.

Após a pesquisa do material sucedeu-se a da aerodinâmica. A tônica era alterar o projeto original de modo a fazer com que a embarcação pudesse ser estável, veloz e duradoura. Descobri que alargando a base, afinando a ponta e fazendo dobraduras das mais exatas possíveis conseguia atingir os objetivos. O barco não poderia ser muito grande, a despeito de ser maleável demais e assim, tombar no rio turbulento e perigoso, colocando em risco todos os embarcados.

Passava horas construindo barcos dos mais diversos para vê-los indo rio abaixo, as velas içadas, a tripulação feliz e preocupada, aos gritos de “estibordo” e “bombordo”. Ficava as vezes sozinho, descalço, sob os olhos atentos de minha vó, que foi quem me ensinou os primeiros passos na construção de barcos. Era ainda um fazer rudimentar, o que me ajudou a desenvolver a barcologia como ciência além da arte. Era impossível dissociar uma da outra. E soltava os barcos no rio, e escutava os gritos da tripulação, e enfrentava pedras e perdas, e meus olhos vidrados acompanhados de um sorriso límpido que era sempre respondido por um outro sorriso discreto de minha vó.

Depois que ela morreu nunca mais fiz barcos de papel. Não pense o leitor que há nisto algo de traumático. É porque não há mais graça nos barcos. Não havia mais o rio para navegá-los; aquele rio perigoso, cheio de crocodilos e piranhas assassinas, violento e puro como água mineral. Sem o rio não há razão para os barcos. A ciência se perdeu no tempo. Hoje nem lembro mais como se faz um barquinho de papel. A barcologia foi contaminada pelo origami decorativo e depois pela navegação eletrônica, e assim, ela caiu em desuso. Os compêndios e manuais orais de construção de barcos de papel se perderam no desinteresse geral e os segredos da arte-ciência da barcologia hoje pertencem aos poucos velhos construtores da mesma época que eu e que já estão para a morte. Os rios não são mais navegáveis, contaminados pela poluição das mentes esgotadas. Extinta, ela só sobrevive em lembranças como esta que o leitor acabou de ler.

A Casa


Olho para aquela casa antiga,
Agora pintada de amarelo e branco,
Agora com portões na entrada da vila,
E não mais reconheço a criança que em mim dormia
Ali vivida e esquecida,
Que outrora regozijava o coração
E agora nostalgicamente o apequena
Diante de lembranças tão singelas
E de um presente de insensibilidades.
E fico parado olhando aquela casa,
Esperando minha vó sair gritando meu nome
Porque o almoço já está pronto,
E então eu paro a brincadeira
E volto correndo para o colo dela
Pra ela me levar pra dentro com carinho,
E sentir de novo aquele gosto de bife-à-milanesa
E depois dormir, e brincar de marceneiro
No sótão, e fingir dirigir o carro de madeira
Que meu avô fez pra mim.
E aí voltar para a rua pra ficar brincando
E ficar com medo da vizinha chata
Fazendo travessuras só pra irritá-la,
E ficar longe da casa mal-assombrada
Inventando estórias de fantasmas,
Vendo fantasmas, fugindo de fantasmas,
E passar o fim de tarde na calçada
Cumprimentando os passantes
Com minha vó me fazendo cafuné
Ouvindo causos de cabelos brancos
Até dar a hora da minha mãe chegar
E me trazer de volta pra onde estou
E me fazer concluir que aquela casa
Tão antiga e tão presente, tão amarela e branca
É um monumento há muito tempo erigido,
Ao ilustre desconhecido passado de minha vida.

julho/2005 – Rio de Janeiro